Douglas do Carmo
Como nos dias atuais, a Jerusalém da época de Jesus era uma cidade turística, visitada não somente por galileus, mas, acima de tudo, por judeus e prosélitos da Diáspora, isto é, judeus que residiam no exterior, ao redor da bacia mediterrânica. Aliás, o número de judeus residentes no exterior era infinitamente superior ao número de judeus autóctones, chegando próximo de cinco milhões de pessoas, em contraposição a não mais que cinquenta e cinco mil habitantes da região da Judeia. A presença maciça de judeus da Diáspora ocorria, é claro, em dias festivos, conforme prescrito na Lei de Moisés (Dt 16.1). Esses eram os momentos em que milhares de famílias peregrinavam à cidade santa, alocando-se nos contornos do Templo, prestando culto ao Deus de Israel por alguns dias.
Mais devotos que os turistas ou peregrinos eram os judeus do exterior que acabavam residindo definitivamente em Jerusalém. Centenas, ou talvez milhares de judeus, bem como pagãos convertidos ao judaísmo, não voltavam para seus respectivos países de origem simplesmente porque não se contentavam em ficar apenas sete dias por temporada na cidade. Havia outros motivos adicionais, como o interesse pelas escolas de teologia judaica, bem como o desejo de findar seus dias em Jerusalém. Esse desejo era baseado em uma crença popular que dizia que todo judeu devia ser sepultado em Jerusalém, talvez baseada no pedido final de José que pediu para que sepultassem seus ossos no lugar em que Deus havia feito a promessa a Abraão (Gn 50.25). Aliás, é justamente aqui que se explica a presença de viúvas do exterior que se integraram à Igreja de Primitiva (At 6.1).
A partir desse costume que acabamos de mencionar, é possível que essas viúvas tivessem seus respectivos maridos sepultados em Jerusalém por desejo pessoal. Isto é, em fase avançada de idade, judeus idosos mudavam-se somente para morrerem e serem sepultados em Jerusalém. À vista disso, Jerusalém amontoou colônias de várias nações ao redor da bacia do Mediterrâneo. Embora saibamos que na época manhã de Pentecostes havia gente de todas as etnias visitando Jerusalém por ocasião de mais uma festa sagrada, temos razões bíblicas para acreditar que nem toda aquela gente era visitante, peregrina ou turista, mas imigrantes, aliás, conforme sugere o sentido da palavra “residindo”, que aparece em Atos 2.5, que na versão NAA já é traduzida por “morando”. Conclui-se, então, que boa parte do povo alcançado por Pedro na manhã de Pentecostes – gente da Ásia, Capadócia, Líbia, Cirene e Egito, e até mesmo de Roma – não estava de passagem em Jerusalém, antes moravam em Jerusalém e lá tinham um ponto de encontro semanal muito bem localizado, e justamente por isso deduz-se que eles marcavam presença notável na sociedade daquele tempo, reunindo-se em sinagogas próprias, conforme mencionado em Atos dos Apóstolos, a chamada “Sinagoga dos Libertos” (At 6.9).
Mencionada uma única vez na Bíblia, a “Sinagoga dos Libertos” ficava nas escadarias das Portas de Huldah, uma das principais entradas do santuário. Essas portas davam acesso ao Pátio dos Gentios, local sobremodo movimentado em dias de festividade, localizado também na região da cordilheira do Ofel, ao sul do monte do Templo, de onde se contemplava parte do monte das Oliveiras. Era um local estratégico, exposto à vista de todos os que caminhavam em direção ao santuário, já que ficava junto a um dos muros, bem à sombra do Templo.
O espaço foi edificado para atender às necessidades básicas dos peregrinos, no entanto os helenistas de residência fixa fizeram do local a sua segunda casa de oração, sem nenhum tipo de interferência das autoridades da Judeia. Nela, a Escritura era lida e explicada pelos doutores helenistas nos dias de sábado e, em pouco tempo, o recinto se tornou um reduto de teólogos da Diáspora, no qual se reuniam para debates fecundos e, vez ou outra, terminavam em discussões sérias.
Os helenistas que moravam em Jerusalém eram religiosos febris, fanáticos, zelosos da Lei de Moisés e pode-se dizer que pagavam um preço alto para morar em Jerusalém. Isso em todos os sentidos. Constatava-se isso só pelo fato de abandonarem seus países, os familiares e, acima de tudo, terem de enfrentar a discriminação panfletada dos judeus hebreus para ficar mais próximos da fé ancestral. Em pouquíssimo tempo, alguns bairros, aldeias e vilarejos da Judeia já abrigavam centenas de famílias de imigrantes que também marcavam presença no comércio local e, por conseguinte, no ambiente jurídico de Israel devido ao forte zelo e competência no manejo da Sagrada Escritura. Aliás, em muitos aspectos, os helenistas eram mais aplicados que os judeus hebreus, os quais tinham melhor contato com o manuscrito original hebraico.
Faz-se necessário informar que, em Jerusalém especificamente, não havia sinagogas. Isso porque a presença do Templo dispensava-a. Realmente, não é possível constatar nos evangelhos e no livro de Atos nenhuma sinagoga na região de Jerusalém, com exceção da Sinagoga dos Libertos (At 6.9) e esta era grega. Essa informação parece ser tão verdade que também não é possível constatar nos evangelhos Jesus ensinando em nenhuma sinagoga em Jerusalém, mas tão somente nas casas – como algumas vezes na aldeia de Betânia, na casa dos irmãos Marta, Maria e Lázaro –, e na esplanada do Templo. Isso porque a Sinagoga dos Libertos não era um recinto de judeus hebreus, mas, sim, dos judeus helenistas. Era um espaço frequentado por peregrinos turistas e imigrantes que, de passagem ou permanentemente, reuniam-se ali para debater teologia e estudar a Toráh na versão grega. Ali se reuniam cireneus, alexandrinos, cipriotas, tarsenses, enfim, gente de toda parte do mundo que visitava a Cidade Santa. Como nos dias atuais, é possível que os cultos fossem segmentados por etnias ou até mesmo em sessões, todavia no mesmo recinto.
É provável que muita gente “famosa” citada no livro de Atos dos Apóstolos, que aderiu ao cristianismo, tenha vindo dessa sinagoga. Quer dizer, Pedro, ao pregar, alcançou gente de lá ou alguns de lá espalharam depois as Boas Novas do evangelho nesse recinto, levando com isso grande confusão naquele ambiente. Acerca dos nomes, estamos falando de Estêvão, Filipe, Silas, Barnabé e Saulo de Tarso, e outros nomes menos conhecidos, como os parentes de Paulo, o casal Andrônico e Júnias (Rm 16.7). Em comum, todos são judeus do exterior, porém residem em Jerusalém, muitos por razões estudantis, como Paulo de Tarso (At 23.3), mas todos por zelo e radicalismo, e é bastante provável que se conhecessem muito antes de se converterem ao Cristianismo.
Devemos levantar algumas reflexões acerca de duas informações bíblicas: 1) Por que Estêvão direcionou suas pregações especificamente para este público (At 6.8-10)? Não seriam eles seus antigos amigos de judaísmo helenístico? E outra: 2) Por que Saulo de Tarso, em sua primeira visita a Jerusalém pós-conversão, vai pregar justamente a estes gregos, conforme sugere Atos 9.29? Não seria porque, da mesma forma que Estêvão, eles seriam seus antigos companheiros de sinagoga grega?
Tudo indica que estamos falando de um reduto gravemente afetado pela mensagem de Pedro. E a partir disso, um a um foi se convertendo ao Cristianismo, trazendo problemas para este lugar. Mas, ainda não tocamos no fundo. É preciso ainda perguntar como tudo isso começou, ou melhor, quem levou a mensagem de Jesus para dentro da Sinagoga dos Libertos.
Uma única vez, porém, de caráter fundamental, Lucas, o autor de Atos, menciona um sujeito chamado Mnason de Chipre, reportado com “discípulo antigo” (At 21.16). Aqui temos duas informações. A primeira é sua nacionalidade: Mnason é da ilha de Chipre, a mesma terra natal de Barnabé (At 4.36). A segunda é que Lucas fez questão de ressaltar que Mnason é um “crente antigo”, talvez nos fazendo pensar que tenha sido ele o primeiro dessa comunidade a crer em Jesus e após isso levar para dentro da Sinagoga dos Libertos o testemunho da ressurreição. É apenas uma intuição, mas não se pode descartar a forma tão singular como Lucas se refere a ele. Já se sabe que esses homens eram bastante perigosos, pois eram radicais. Sabe-se também que o radicalismo e fanatismo de Saulo de Tarso – um antigo membro dessa sinagoga – podem não ter sido ensinados por seu mentor Gamaliel, o qual se demonstrou complacente ao Cristianismo e ainda orientou os sacerdotes a agirem com cautela, pois o movimento poderia ser de Deus, isto é, verdadeiro.
Isso leva a crer que Saulo fazia parte dessa Sinagoga e lá demonstrava seu zelo e radicalismo. Aliás, é possível que todos os primeiros sete diáconos também tenham vindo de lá. Portanto, a Sinagoga dos Libertos foi afetada, perdendo muitos membros que se tornaram diáconos na Igreja de Jerusalém, e apoiaram os apóstolos no serviço aos santos.
Douglas do Carmo é pastor-auxiliar na Assembleia de Deus em Bonsucesso, Rio de Janeiro (RJ), e mestrando em Teologia na PUC-Rio. É pós-graduado em Teologia Bíblica do NT e bacharel em Teologia pela FAECAD.
Fonte: Artigo publicado no Jornal Mensageiro da Paz, Ano 91 – Número 1.629 – Fevereiro de 2021