O Batismo no Espírito Santo

Como pentecostal começo este texto com um testemunho. O testemunho é parte do nosso ethos. A tradição pentecostal está cheia de histórias de manifestações físico-emocionais em seus cultos. No livro “Diário do Pioneiro”, que nos relata a trajetória do missionário Gunnar Vingren (1879-1933), é descrito que o fundador das Assembleias de Deus no Brasil experimentou um riso espontâneo no momento de uma oração congregacional1. No meu caso, em um culto de oração de quinta-feira do ano de 2003 experimentei o que chamamos de Batismo no Espírito Santo. A sensação era de leveza, maravilhamento e senso da presença de Deus. Alguns dias depois a experiência se repetiu, porém ainda mais intensa, e, além da sensação de leveza, senti uma espécie de deslocamento espacial. Como o apóstolo Paulo (2 Co 12.3), eu não sabia se estava no corpo ou fora dele, ou se estava dentro do templo ou no céu. É quase impossível descrever o que senti naquele culto. Os meus braços ficaram levantados e eu não sentia nenhum cansaço. Ao sentir aquele peso de glória comecei a cantar em línguas. Não eram poucas palavras fruto de alguma imitação coletiva e nem era o balbuciar da linguagem infantil, todavia, essa “língua estranha” fluía com tanta abundância que comecei a cantar em um idioma que desconheço, mas que soava complexo. Julgo-me alguém “racional”, mas naquele dia chorei de alegria mais do que em qualquer outro momento da minha vida.

O Batismo no Espírito Santo é a doutrina paradigmática da fé pentecostal. É o conceito que serve de modelo de derivação ao conjunto de práticas carismáticas do pentecostalismo – como os dons espirituais, a liturgia extática, as elocuções proféticas e a evangelização ousada. O protestantismo (reformado, anglicano e luterano) sempre entendeu o Batismo no Espírito Santo como sinônimo de conversão, enquanto os católicos enxergam o Batismo no Espírito associado ao sacramento do batismo com águas2. A base para essa interpretação soteriológica está especialmente no texto de Paulo aos coríntios: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito” (12.13, NAA). O problema básico dessa interpretação é que as expressões “batismo” e “Espírito Santo” não aparecem apenas nesse texto paulino, mas em vários outros no Novo Testamento (Mc 1.8, Mt 3.11, Lc 3.16; Jo 1.33; At 1.5). Daí nasce uma questão hermenêutica básica: os textos dos Evangelhos e de Atos que falam de um “batismo no Espírito” estão necessariamente ligados à observação paulina dada aos coríntios? Os pentecostais respondem com um sonoro “não”. Os evangelistas não estão registrando o mesmo fenômeno mencionado pelo apóstolo Paulo e o que determina cada interpretação diferenciada é o devido contexto.

Os evangelistas não devem ser lidos arbitrariamente à luz de Paulo, especialmente quando o entendimento entre eles é distinto, embora seja complementar. Constantemente os protestantes têm caído na tentação de criar um cânon dentro do cânon. Os mais conservadores fazem isso com as epístolas paulinas (o que podemos chamar de “paulinização” do Novo Testamento), enquanto os progressistas tendem a fazer o mesmo com os Evangelhos. É um erro, especialmente quando lembramos o que disse o apóstolo Paulo a Timóteo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o servo de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2 Tm 3.16-17 NAA). É “toda a Escritura”, não apenas parte dela.

Levando muito a sério cada autor das Escrituras os pentecostais vêm apresentando nas últimas décadas uma leitura mais holística e completa sobre a analogia do batismo com o Espírito Santo nas páginas do Novo Testamento. Como lembra Frank D. Macchia, a analogia completa do batismo no Espírito Santo é tanto soteriológica (e sacramental) como carismática3. Essa leitura do quadro completo faz mais justiça à Sagrada Escritura. Resumir o batismo no Espírito a apenas um evento soteriológico – como a tradição protestante vem fazendo desde sempre – é redundar em um erro basilar de leitura. Assim como seria um erro se os pentecostais levassem em conta apenas o aspecto carismático do batismo espiritual. Para fins didáticos, os pentecostais dividem o batismo soteriológico (Batismo pelo Espírito) e o batismo carismático (Batismo no Espírito) pela preposição.

James D. G. Dunn (1939-2020), em um elogio aos pentecostais, mostra que o pentecostalismo evitou tanto o sacramentalismo extremo do catolicismo romano como o biblicismo extremo do protestantismo:

Como os ‘entusiastas’ anteriores, os pentecostais reagiram contra esses dois extremos. Contra o sacramentalismo mecânico do catolicismo extremo e a ortodoxia biblicista morta do protestantismo extremo, eles mudaram o foco de atenção para a experiência do Espírito. Nosso exame das provas do NT mostrou que eles foram totalmente justificados nisto. Que o Espírito, e particularmente o dom do Espírito, foi um fato de experiência na vida dos primeiros cristãos foi óbvio demais para exigir elaboração (por exemplo, Atos 2..4; 4.31; 9.31; 10.44-46; 13-52.; 19.6; Rom. 5.5; 8.1-16; I Cor. 12..7, I3; II Cor. 3.6; H; Gal. 4.6; 5.16-18,2.5; I Tess, 1.5f.; Tito 3.6; João 3.8; 4.14; 7.38f.; 16.7 – a presença do Espírito era para ser melhor do que a presença de Jesus). É um triste comentário sobre a pobreza de nossa própria experiência imediata do Espírito que quando nos deparamos com uma linguagem em que os escritores do NT se referem diretamente ao dom do Espírito e à sua experiência dele, ou o referimos automaticamente aos sacramentos e só podemos dar-lhe significado quando o fazemos (I Cor. 6.11; 12. 13; II Cor. 1.21f.; Ef. 1.13f.; Tito 3.5-7; João 3-5; 6.51-58, 63; I João 2.20, 27; 5.6-8; Heb. 6,4), ou então desconsideramos a experiência descrita como demasiadamente subjetiva e mística em favor de uma fé que é essencialmente uma afirmação de proposições bíblicas, ou então nós, em efeito, psicologizamos o Espírito fora da existência4.

Dunn resume em um parágrafo o medo da experiência no cristianismo tradicional (católico e protestante) e a tendência de transformar a manifestação do Espírito em uma proposição racional, um sacramento rígido e uma psicologização existencial.

Jesus Cristo é retratado nos Evangelhos e em Atos como o agente batizador do Espírito (Mc 1.8, Mt 3.11, Lc 3.16; Jo 1.33; At 1.5). Enquanto isso, o contexto e a própria construção grega de 1 Co 12.13 indicam que o agente desse batismo espiritual é o Espírito Santo, e não Jesus. Quem capta bem esse sentido é a Nova Bíblia Viva (NBV): “Todos nós fomos batizados no corpo de Cristo pelo único Espírito, e a todos nós foi dado beber do mesmo Espírito Santo”. A Nova Versão Transformadora (NVT) assim traduz a segunda parte do versículo: “Mas todos nós fomos batizados em um só corpo pelo único Espírito, e todos recebemos o privilégio de beber do mesmo Espírito”. O grego permite traduzir que somos batizados no corpo, que é preexistente, e o agente desse batismo é o Espírito Santo. É esse é o sentido abraçado também pela ARA (Almeida Revista Atualizada) e pela NAA (Nova Almeida Atualizada), como acima já mencionado.

Batismo pelo Espírito Santo Batismo no Espírito Santo
O agente que batiza O Espírito Santo Jesus Cristo
Referências (em negrito o texto de destaque) Ez 36.26-28, 1 Co 12.13, 2 Co 1.22; Ef 1.13 Nm 11.24-29; 1 Sm 10.5-11; Jl 2.28-2; Mc 1.8, Mt 3.11, Lc 3.16; Jo 1.33; At 1.5, 2.1-13, 4.8, 4.31, 6.3, 7.55, 8.14-17, 9.17, 10.44-47, 11.15-17, 13.9, 15.8, 19.1-7
Onde somos mergulhados, imersos, submergidos? No Corpo de Cristo No Espírito Santo
Qual a etapa da vida cristã está envolvida? A regeneração. É a inserção no Corpo Místico de Cristo. O serviço. É o poder para o testemunho público ousado em palavras e obras.
Momento Na conversão Normalmente subsequente à conversão
Sinais O fruto do Espírito A elocução profética (glossolalia)
Consequência Santidade Testemunho eficaz
Tradição veterotestamentária Ezequiel Moisés, Samuel e Joel
Tradição neotestamentária Paulina Evangélica (Marcos, Mateus, Lucas e João)

Uma caricatura comum diz que os pentecostais tratam o Batismo no Espírito Santo como uma “segunda bênção” ou uma experiência equivalente à conversão. Os protopentecostais, de origem metodista, de fato, viam o Batismo no Espírito como uma segunda ou terceira bênção de caráter definitivo. Mas essa nomenclatura não é usada há décadas na literatura pentecostal. Sintaticamente, o pastor Antonio Gilberto (1927-2018) resumiu a nossa posição pentecostal sobre o conceito do Batismo no Espírito Santo: “É um revestimento ou dotação de poder do alto, pela instrumentalidade do Espírito Santo, para o ingresso do crente numa vida de profunda adoração e eficiente serviço a Deus”5. Myer Pearlman (1898-1943), na primeira teologia sistemática do pentecostalismo, escreveu que o propósito do Batismo no Espírito Santo é “dar energia à natureza humana para um serviço especial para Deus”6. Sobre a capacitação do Espírito, o teólogo J. Rodman Williams (1918-2008) observou: “Os discípulos não foram autorizados a desfrutar a nova vida em Cristo e esquecer o mundo exterior; ao contrário, eles precisaram de um batismo no Espírito que desse poder ao seu testemunho, de forma que outros pudessem igualmente receber vida e salvação”7. A ligação estreita entre o Batismo no Espírito Santo e o serviço testemunhal possibilitou ao pentecostalismo uma vitalidade missionária sem precedentes8.

Observe que nenhum dos autores coloca o Batismo no Espírito Santo como uma “segunda bênção” ou como uma experiência de crise semelhante à conversão. O teólogo assembleiano Anthony D. Palma pontua:

A experiência pós-conversão de ser batizado no Espírito é uma obra do Espírito distinta daquela da regeneração, mas não implica que a salvação seja um processo em duas etapas. (…) (O Batismo no Espírito) é um dom, mas não é apropriado chamar de “uma segunda obra da graça”. Tal linguagem implica que um crente não pode ter experiência da graça de Deus entre a fé inicial em Cristo e o enchimento inicial do Espírito. (…) Essa obra distinta de pós-conversão do Espírito não regula outras experiências do Espírito que possam precedê-la ou segui-la.9

Embora o batismo carismático seja uma experiência importante, o pentecostal está ciente que a conversão, a santificação e a frutificação são ainda mais importantes e necessárias. Os pioneiros pentecostais enfatizaram a importância do fruto do Espírito e da construção de um caráter santo. Antonio Gilberto pontuava que “é preciso que haja na vida cristã um equilíbrio na manifestação dos dons espirituais e no exercício do fruto do Espírito (…). Há a tentação de nos tornarmos orgulhosos, quando vemos a demonstração do poder de Deus por nosso meio. O amor genuíno por Deus e pelas pessoas nos deixa cientes de que este poder de Deus é somente para glorificá-lo e nos tornar servos capazes para os outros”10. Os pentecostais também estão pontuando sobre a necessidade de desfocar de uma espiritualidade excessivamente individualista que despreza a realidade cósmica da criação de Deus. Amos Yong observa: “a obra do Espírito é redimir e transformar nosso mundo como um todo, juntamente com todas as suas partes, estruturas e sistemas interconectados”11.


1 VINGREN, Ivan. Diário do Pioneiro. 5 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2000. p 73.
2 “Atendo-se principalmente à tradição de Lucas, os pentecostais ressaltam a existência de dois batismos, ao passo que a maioria dos cristãos mais tradicionais como católicos romanos, luteranos e presbiterianos, atendo-se mais ou menos à tradição paulina, enfatiza um só batismo em associação com a conversão ou com os sacramentos”. DYRNESS, William A. e KÄRKKÄINEN, Veli-Matti. (Ed). Dicionário Global de Teologia. 1 ed. São Paulo: Editora Hagnos, 2017. p 85.
3 Veja: MACCHIA, Frank D. Baptized in the Spirit: A Global Pentecostal Theology. 1 ed. Grand Rapids: Zondervan, 2009. Veja também: KEENER, Craig. O Espírito na Igreja: O que a Bíblia ensina sobre os dons. 1 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2018. pp 165-190.
4 DUNN, James D. G. Baptism in Holy Spirit: A Re‑examination of the New Testament. 1 ed. Louisville: Westminster John Knox Press, 1970. p 225-226.
5 SILVA, Antonio Gilberto da. Fundamentos da Vida Cristã. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2019. p 31
6 PEARLMAN, Myer. Conhecendo as Doutrinas da Bíblia. 1 ed. Editora Vida, 1970. p 311.
7 WILLIAMS, J. Rodman. Teologia Sistemática: Uma Perspectiva Pentecostal. 1 ed. São Paulo: Editora Vida, 2011. p 510.
8 Sobre isso, veja: SIQUEIRA, Gutierres Fernandes e TERRA, Kenner. Autoridade Bíblica e Experiência no Espírito: A contribuição da hermenêutica pentecostal-carismática. 1 ed. Thomas Nelson Brasil, 2020. p 206-218. POMERVILLE, Paul A. A Força Pentecostal em Missões: Entendendo a contribuição dos pentecostais na teologia missionária contemporânea. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2020. p 169-185.
9 PALMA, Anthony D. O Batismo no Espírito Santo e com Fogo. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2002. p 50,51.
10 SILVA, Antonio Gilberto da. O Fruto do Espírito: a plenitude de Cristo na vida do crente. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2004. p 40.
11 YONG, Amos. Quem é o Espírito Santo: uma caminhada com os apóstolos. 1 ed. Cuiabá: Editora Palavra Fiel, 2019. p 20.


Gutierres Fernandes Siqueira é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade Paulus e pós-graduado em Mercado Financeiro pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduando em Hermenêutica pela Faculdade Batista do Paraná. Edita o blog “Teologia Pentecostal” há mais de 14 anos. É autor dos livros “Revestidos de Poder: Uma Introdução à Teologia Pentecostal” e “O Espírito e a Palavra: Fundamentos, Características e Contribuições da Hermenêutica Pentecostal”, ambos lançados pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD), além de outros livros. Atua na área de ensino da Igreja Evangélica Assembleia de Deus – Ministério do Belém – em Pinheiros, São Paulo (SP).